O engraxate nu



    Sempre no mesmo horário, ele faz o mesmo percurso, a fim de encontrar os engravatados nos lugares de costume. É uma pessoa simples, sem muita frescura e de vocabulário pobre, “vai uma graxa aí? ” e “ obrigado sinhô” é o que mais se escuta desse homem, alias, é só o que se escuta dele. As roupas eram trapos, a beira de desintegrarem em suas mãos, as ganhou na infância e já estavam muito mais que usadas.
 Após engraxar o sapato italiano do seu Alcidez, pegou os dois reais que cobra pelo serviço e partiu para seu buraco, e quando digo buraco não é sentido figurado pois se trata de um bueiro inutilizado pela prefeitura a mais de oito anos, nessa noite particularmente quente resolveu tirar o que lhe sobra de roupa para descansar nu, Magrelo, seu cão, não se encontrava no recinto improvisado como quarto mas o engraxate não estranhou, devia estar atrás de ratos e ratazanas que trazia para dividir com seu “chefe de matilha”. Pôs-se a dormir sem maiores preocupações.
 No dia seguinte como de costume, acendeu um cigarro enrolado de bitucas que os “patrões”, clientes do nosso humilde amigo, largavam com desdém em qualquer lugar, pos a caixa feita com sobras de construção  no ombro e se esgueirou pra fora de sua casa. Só depois de uns dois quarteirões passou a se incomodar com os olhares aflitos, não que se importasse com isso pois era normal olharem-no entortando o nariz ou para simplesmente desviar do suspeito assaltante morador de rua. Calmamente continuou a caminhar, sem se preocupar ao seu “escritório” para ganhar suas notas que as vezes eram substituídas por lanches engordurados parcialmente consumidos pelos nutridos clientes ou moedas escurecidas (que nunca chegavam ao valor cobrado). Um grito feminino em suas costas o fez quase derrubar sua engraxadeira, que com o tranco da olhada repentina pra traz fez cair a escova, foi nesse momento, quando se abaixou pra pegar sua ferramenta que ele reparou que estava NU em plena calçada do prédio espelhado a partir do primeiro andar, ficou imóvel por uns trinta segundos sem entender como esquecera de por suas roupas antes de ir ao trabalho, em jejum ninguém funciona muito bem, principalmente sem comer a três dias. Mas um lapso de consciência o pos a pensar: “U Magrelo num tem essas frescura di si visti e ta sempre cuntenti, us patrão so fica de cara amarradae são tudu igual, devi di se pur modi dessas ropa ai. Pois eu vo prefiri anda qui nem u Magrelo, pelado e cuntenti”. Uma sensação de orgulho tomou o coração de nosso desnudo companheiro que não era mais olhado com medo ou nojo, e sim por olhares de espanto que recebia de todos, por um segundo, algo o fez se sentir como alguem importante, passou a chamar atenção dos munícipes, era poderoso dentro de sua nova identidade, o homem que decidiu viver como seu cão.
 Não demorou a chegar os homens da lei e o prenderem tomando o cuidado de taparem o instrumento pecaminoso, que o fez responder por atentado violento ao pudor. Tomado ainda pela sensação inédita de estar sendo percebido pela sociedade, não se incomodou em ficar encarcerado por trinta e cinco anos pregados pelo excelentíssimo juiz de plantão. Agora ele tem tempo de sobra pra admirar e ponderar sobre sua decisão de se tornar um cão; amigo, fiel, carinhoso, bem diferente dos engomados comedores de porcaria forrados de dinheiro. Não precisava mais engraxar nem dormir no esgoto, tinha comida nos horários e uma cama com coberta.




3 comentários:

Alberto Machado disse...

Ontem vi um filme que tambem retratava "A vida de cão" chama-se "Baixio das Bestas", é comum encontrar essas histórias por ai. Outro dia eu vi um engraxate e na caixinha dele estava escrito, o rei do brilho. Ai pensei: Como o reis do brilho pode estar engraxando sapatos?

Abraços Tom.

AMO VC disse...

POR ISSO ELE EH O REI DO BRILHO... COMO DIRIA O LEONARDO DA VINCI: QUERO SER ENTERRADO COM A LUZ DOS MENDIGOS...

(E ASSIM FOI ;)

Béba disse...

Amizade que me orgulha... mentes pensantes e mãos que espelham o que se vê e não se crê... Adoro, Tonzinho!